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A Queda de um Ego

de Vera Mantero, 1997

A primeira questão que se me pôs foi: "Bolas! Tanta pobreza de espírito!".
A segunda questão que se me pôs foi: "Saberei eu o que é riqueza de espírito?"
O que é riqueza de espírito??
Pus-me à procura. Por uma incrível coincidência aqueles a que me dirigi falam todos pelo menos de uma mesma coisa: a necessidade de deixar o ego para trás, de o abandonar sem dó nem piedade. Isto do Freud ao Buda, dos malucos dos psicadélicos ao razoável e delicioso Kenneth White. Alguns fragmentos:
"The metaphysical experiences always promise that once the ego is dropped, the true knowledge is arrived at".
"Returning to the bosom of the planetary partnership means trading the point of view of the ego for the intuitional translinguistic understanding of the maternal matrix".
Terence McKenna, The Archaic Revival

"C'est la peur de cette absorption, de cette conversion anéantissant le 'je' ancien, qui explique - je crois - l'intolérace plus active (...) qui se bouche les oreilles, élève la voix et qui 'détourne la conversation' pour ne pas s'exposer aux arguments d'autrui. Arguments qui peuvent nous montrer que nos jugements les plus profondément ancrés n'étaient que des préjugés, cela pour ne pas s'exposer à voir comment la vertu de l'argument étranger ronge la carapace sécrété par notre 'je' afin de se défendre dans le monde'".
"La tolérance est contradictoire avec la nature narcissique de l'idéal".
"Il faudrait dire d'abord de la tolérance qu'elle ne peut être 'principe' que pour autant qu'elle est résultat: le résultat d'une éducation par la psychanalyse. Idéal paradoxal, elle serait, à cet égard, l'effet du travail de désidéalisation qui est celui de la psychanalyse"
La Tolérance, éd. Autrement, vários autores
 
"Je ne vois pas chez lui [James Joyce] l'approche de ce qu'il m'arrive d'appeller le 'monde blanc', entendant par 'blanc' non pas frappé d'absence, mais non interprété (car 'nous ne sommes pas bien chez nous dans le monde interprété'). L'approche de ce monde blanc me semble être moins le fait de la polyphonie lexicale joycienne, dernier grand concerto de la culture occidentale, que d'une musique du désert (encore William [Carlos Williams]), 'pénétrante et simple'. C'est à dire que le poème, l'acte artistique, est le signe ou le résultat d'un travail accompli hors de l'art. Joyce porte la culture occidentale entière sur le dos, tandis que j'imagine un être humain qui (revoici Nietzsche), s'étant cultivé, sait danser".
Kenneth White, La figure du dehors

Não se tratará provavelmente só disto. Não se trata só disto. Trata-se também da Ilha de Espírito (um paraíso de sensibilidade, de gente com sabedoria). Trata-se de acordar. Trata-se de reinventariar valores, imaginar como os viver, como os trabalhar, como os celebrar. A pequena tarefa do costume de quem ainda não desidealizou o suficiente.
 
a cultura está em erosão.
o espírito está em erosão. estão os dois a desfazer-se. estão a desaparecer.
o espírito pode entreter-se com coisas ricas ou pode entreter-se com coisas pobres. o espírito é uma criatura muito ávida de ocupação, precisa de se ocupar constantemente, o espírito deve ser o único pedaço de nós que ficou criança e que precisa de estar sempre entretido com qualquer coisa. se dissermos a coisa assim a palavra entretenimento torna-se muito menos pecaminosa. enquanto me entretenho com o Glenn Gould e as suas Variações Goldberg eu não morro e nada morre à minha volta. Necessitamos das artes para não morrermos. As artes falam connosco, as artes dizem-nos coisas, não se calam. Não se calam, não nos deixam no silêncio, não nos deixam naquele silêncio em que se morre de tédio, aquele silêncio das casas, aquele silêncio das casas onde não há livros e uma pessoa anda de assoalhada para assoalhada cheia de fome de livros. Casas burguesas, muitas vezes, onde não falta dinheiro para pôr as paredes a falar mas onde o espírito já deve ter morrido, porque os mortos não precisam de se entreter. Os mortos não precisam que falem com eles, não precisam que lhes contem nada, não precisam de fazer uma leitura das coisas, ou precisamente não querem fazer leitura nenhuma das coisas, não se querem ler nem se querem saber. É sempre duro apercebermo-nos de que estamos mortos. Os mortos endinheirados.
vejo as artes como um resíduo, aquilo que resta de uma série de coisas que o ser humano gosta de fazer, e precisa de fazer, para manter o seu espírito num determinado ponto de possibilidade. Talvez não só de possibilidade como de interesse. Um ponto em que é possível e interessante existir. Estas coisas que mantêm o espírito nesse ponto são coisas que algures, não sei se no tempo ou no espaço, estão espalhadas pela vida das pessoas, estão espalhadas pela existência em geral, e que aqui, ou agora, se confinaram a determinados locais, a determinados objectos, últimos redutos dessas coisas.
o ser humano precisa de ler o mundo. precisa de ir fazendo leituras do mundo. provavelmente não para entender, para explicar qualquer coisa, para arrumar de vez um assunto, mas simplesmente para se situar num ponto, para ter um ponto onde se possa estar, dos milhares de pontos possíveis onde se pode estar. a arte é pensar, é fazer uma leitura do mundo. normalmente a esta altura do camponeonato gosto sempre de citar um pedacinho da marguerite duras que diz assim: "nada se passa na televisão. ninguém fala na televisão. falar como falar. quer dizer: a partir de qualquer coisa, de seja o que fôr, um cão atropelado por ex., repôr em marcha o imaginário do ser humano, a sua leitura criadora do universo, esse estranho génio, tão espalhado pelo mundo, e isto a partir de um cão que foi atropelado".
o ser humano precisa de não estar sempre no quotidiano, precisa de sair do quotidiano e entrar noutros níveis, noutra sensação do mundo. precisa de fazer coisas não produtivas, sair da lógica da produção, ter objectivos diferentes desses. precisa de voltar a saber que não há só um caminho entorpecedor e mecânico, que a vida é mais subtil do que isso, mais rica de redes e fios de sentidos e sensações, de linhas que se cruzam e que baralham e iluminam. é preciso reconhecer essas coisas, assinalá-las, sublinhá-las, não só através do discurso mas também com o corpo, em acções, associando sentidos e elementos, virando de vez em quando as coisas ao contrário, desorganizando e reorganizando. é preciso olear o espírito, olear o ser. é preciso também pensar com o corpo, deixar o corpo falar, pobre corpo. é preciso sair de dentro do porta-moedas e entrar na associação, no delírio, na sujidade (é muito importante não termos medo da sujidade), na 'acoplagem', acoplagem de elementos ao nosso corpo, acoplagem de sentidos ao nosso corpo, ou acoplagem de objectos e sentidos entre si, é preciso entrar na transformação, é preciso não esquecer que há uma coisa que se chama êxtase, é preciso entrar no êxtase, na contemplação, na calma, nos sentidos do corpo, no corpo, na poesia, em visões, no espanto, no assombro, no gozo, no inconsciente, na perda, no esvaziamento, no desprendimento, na queda, é preciso tirar os sapatos, é preciso deitarmo-nos no chão, é preciso entrarmos na imaginação, nas histórias, no pensamento, nas palavras, no humor, no pensamento, nas palavras, no humor, no pensamento, na relação com os outros.
nós precisamos muito disto, precisamos muito disto tudo, e estamos a ter muito pouco disto e é por isso que como disse no início, o espírito está em erosão, a cultura está em erosão e nós às vezes estamos muito tristes ou temos a sensação que a vida desapareceu de cá de dentro.

Sinceramente*
Acredito sinceramente que a dança contemporânea é a arte do futuro. A única e último resíduo em que vejo resolvido o velho e fundamental problema do pobre ser humano: corpo e espírito finalmente juntos(1). O único sítio também em que as pessoas se tocam neste sociedade (um verdadeiro fenómeno nesta sociedade!), em que se permitem esse elemento fundamental da relação humana.
Além disso agradam-me nela (apesar de poder também encontrar isso pelo menos nas artes visuais e na poesia) a não obrigação de linearidade, de narratividade, de tipo de linguagem, a enorme liberdade na construção, o que permite de facto o contacto com universos nossos nos quais raramente nos aventuramos. E que são fundamentais para a nossa sobrevivência.
*uma declaração de propaganda à dança contemporânea
(1) possível de encontrar também em algum teatro experimental feito longínquamente.
 
Os Processos
"Ça arrive dans un livre, à un tournant de phrase, vous changez le sujet du livre. Sans vous en apercevoir, vous levez les yeux vers vôtre fenêtre: le soir est là. Vous vous retrouvez le lendemain matin devant un autre livre. Les tableaux, les écrits ne se font pas en toute clarté. Et toujours les mots manquent pour le dire, toujours."
Marguerite Duras

Ficha Artística

Direcção
Vera Mantero

Co-criação e interpretação
Vera Mantero, Ana Sofia Gonçalves, Margarida Mestre, Christian Rizzo, Frans Poelstra e Nuno Bizarro

Adereços
Toda a equipa com o apoio deTeresa Montalvão

Luzes
Cathy Olive

Técnico de som
Maria Manuel Matos

Figurinos
Toda a equipa com o apoio de Christian Rizzo

Banda sonora
Christian Rizzo com o apoio de toda a equipa

Música
John Cage, Père Ubu, Gérôme Nox, música tradicional dos Camarões, Porstishead

Textos de
Paul Auster, Richard Long e adaptado de Samuel Becket

Produção executiva
Eira; Delphine Goater; O Rumo do Fumo

Co-produção
Fundação Calouste Gulbenkian / Serviço Acarte; Forum Dança; Devir / Loulé; EIRA ( subsidiada pelo Ministério da Cultura); Rencontres Choréographiques Internationales de Seine St Denis 1996; Frankfurt Mousonturm

Apoio
Institut Franco – Portugais

Duração
100 minutos

Cronologia

20 Março 1999, Culturgest, Lisboa, Portugal
17 Junho 1998, South Bank Centre, Londres, Grã-Bretanha
14 Fevereiro 1998, Teatro Rivoli, Porto, Portugal
9 - 10 Fevereiro 1998, Sala Cuarta Pared, Madrid, Espanha
24 Novembro 1997, Festival Danças na Cidade, Lisboa, Portugal
15 Novembro 1997, Mostra de Dança Contemporânea, Loulé, Portugal
23 Outubro 1997, Festival Nouvelles Scènes, Dijon, França
19 Outubro 1997, Festival Octobre en Normandie, Dieppe, França
17 Outubro 1997, Mainzer Kammerspiele, Mainz, Alemanha
14 - 15 Outubro 1997, Kunstlerhaus Mousonturm, Frankfurt, Alemanha
1 - 2 Outubro 1997, Fest. Int. de Nouvelle Danse, Montréal, Canadá
18 - 20 Setembro 1997, Teatro Cinearte, Lisboa, Portugal