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Top 10

de Miguel Pereira, 2003

Peça concebida e apresentada no âmbito do Capitals/CAM/JAP – Fundação Calouste Gulbenkian

1963: Nasce uma estrela em Moçambique
1973: David Bowie mata Ziggy Stardust em Londres

Julie (25 anos): «Estava no Hammersmith Odeon em 1973, quando Bowie matou Ziggy. Ia quase sendo esmagada! Montes de homens despiram as cuecas e mostravam as pilas a toda a gente. Havia muitos fluídos a passar por ali. Vi uma rapariga a chupar um tipo ao mesmo tempo que tentava ouvir o que é que estava a acontecer. Senti que aquele momento era mesmo extraordinário porque as pessoas não estavam inibidas. E lembro-me de que ninguém estava com problemas em fazer o que lhe apetecia, porque corriam rumores de que talvez este fosse o último espectáculo do Bowie. Talvez fosse a última vez que ele ia actuar. E claro que todos entrámos na onda, senão éramos considerados uns cortes. Toda a gente se despiu. E as punhetas ainda era o menos! Um tipo que estava ao pé de mim batia uma punheta ao ritmo da música e eu só pensava: meu Deus! O que é que ele não fará sozinho em casa! Foi então que me apercebi de que todas aquelas coisas que eu tinha estado a fazer eram perfeitamente normais. Porque as pessoas estavam todas a fazê-lo umas com as outras, estavam a partilhar. Que maravilha que era, sabes. Por isso pensei: deixem-se vir à vontade. Além de que nunca na vida vi tantas pilas» – in STARLUST (1985) de Fred & Judy Vermorel

1993: A estrela estreia-se a solo em Lisboa
2000: A estrela cria o seu alter-ego, Antonio Miguel, uma estrela pop italo-portuguesa
2003: A estrela pop entra no TOP TEN e morre no palco Capitals em Lisboa

TOP TEN, O TEXTO PERFORMATIVO
Cláudia Galhós

Rudolf Laban defendia que «existe uma relação quase matemática entre a motivação interior do movimento e as funções do corpo», o que permitia que cada gesto constante de uma nova obra coreográfica pudesse ser notado num rigoroso guião que permitiria, mais tarde, concretizar a utopia de que essas obras fossem reconstruídas, mesmo que o corpo habitado pela memória do gesto tivesse falecido e não restassem vestígios que permitissem essa mesma reconstrução – como fotografias ou desenhos/esboços (antes do aparecimento do vídeo, esse milagroso perpetuador democrático de todo o acto criativo anteriormente volátil) – desde que o código fosse aprendido e partilhado.
Hoje em dia, precisamente devido ao aparecimento do vídeo e à democratização deste acesso à imortalidade do registo de qualquer acto humano, banalizou-se essa capacidade de fixar e salvaguardar a memória de algo considerado excepcional (claro que a democratização implica que o lixo também seja salvo para a posteridade e seja salvaguardada a sua preservação e levanta outras questões sobre a qualidade desse mesmo registo e se esse não é já um outro objecto…). É precisamente devido a este contexto que se torna ainda mais urgente a concretização de uma outra utopia, de encontrar um código de escrita, semelhante ao vulgo «guião» tão banalizado no teatro, que registe, de forma responsável, o objecto artístico escolhido. Mas aqui, e seguindo a lógica de diversidade de possibilidades implícita no exercício da liberdade criadora, este exercício de construção de texto, que remete para a análise de um objecto performativo que o antecede, caracteriza-se pelo mesmo factor de autoria que se manifesta de modo igualmente performativo na sua prática de escrita. Ou seja, a escrita é exercida em plena consciência de que há um grau de subjectividade, de erro, de rendição ao desejo, que o escritor-teórico não nega e faz impregnar de qualidades dinâmicas,
elas próprias criativas, o próprio exercício de olhar e fixar uma memória de um determinado objecto, neste caso a experiência performática de Miguel Pereira, intitulado Top Ten. Assim, se espera, com todos os riscos inerentes, inclusive o risco de nada ser criado, que surja um guião (mesmo que sobre uma inconclusão) que traduza intenções e questões exploradas pelo intérprete-criador auto-colocado às ordens dos representantes do público-coreógrafo, partindo da ideia da morte da pop-star (da morte do artista?).
Este guião criativo pretende seguir a lógica não apenas do questionar da autoria – que está implícita na criação de Miguel Pereira, ao inverter as dinâmicas e hierarquias de poder dentro da pirâmide artística de criação para palco, atribuindo a um grupo de dez elementos do público, previamente seleccionado a partir de um casting, a responsabilidade de criar, cada um, individualmente, um momento desta peça que terá como intérprete o autor do projecto, Miguel Pereira – mas igualmente de perceber até que ponto um mesmo objecto artístico, partindo de uma mesma natureza, apesar de se traduzir em diferentes formatos (peça para palco versus texto) pode resultar em dois objectos distintos ou num mesmo objecto que tem duas formas de expressão de uma mesma ideia criativa. Porque, se o teatro recorre frequentemente a uma dramaturgia previamente escrita, que permite a sua recriação por um novo encenador, aqui aplica-se o processo inverso: o guião surgirá à posteriori. Está condicionado ao trabalho desenvolvido pelos espectadores-coreógrafos e o intérprete-criador envolvidos. Desta experiência – partindo da observação passiva de todo o processo criativo – decorrem várias questões: Até que ponto o texto não poderá revelar-se, por todas as características previamente enunciadas, uma performance de texto que se activa na leitura solitária de um espectador em silêncio consigo próprio ou se activa na partilha a voz alta perante um conjunto de espectadores, potenciais espectadores-coreógrafos? E até que ponto não poderá revelar que o artista morreu, que qualquer um pode ser (é) criador em potência e a arte está condenada à existência quotidiana individual, concretizada nas suas tragédias ou sonhos particulares? É mais uma investigação a decorrer no âmbito do Big Seminar dos Capitals. Este é o ponto de partida. O resultado é uma incógnita.

Ficha Artística

Direcção artística e Interpretação
Miguel Pereira

Criação
A.Branco; Ana Checa; Augusto Seabra; Carla Alonso; Fátima Vaz; Fernanda Fusco; José Bragança de Miranda; Maria de Assis; Manuel Henriques e Miguel Jorge

Guião e apoio à Dramaturgia
Cláudia Galhós

Assistência de Ensaios
Pietro Romani

Com a Colaboração Especial de
Margarida Mestre

Produção
CAM/JAP

Apoio
O Rumo do Fumo

Cronologia

Estreia - 2 Fevereiro 2006, Cube Microplex/Festival InBetweenTime..., Bristol/Reino Unido