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Um Estar Aqui Cheio

de Vera Mantero & Convidados, 2001

“If I can’t dance in your revolution, I’m not coming”.
Emma Goldman

as ligações entre liberdade e desejo. entre abertura e emergência de movimento.
criar aquilo que cria movimento. criar o que cria desejo. criar o que cria aberturas.
incluir na vida toda a potência do corpo, toda a potência do seu saber, e toda a potência do seu desejo, dos seus diversíssimos desejos.
compreender a vida sensualmente, compreender a vida socialmente.
viver na presença de todo o padrão poético.
continuar a fazer leituras do mundo, leituras criadoras do mundo, e criadoras de sentido. dar sentido ao estar aqui. um estar aqui cheio. o que implica necessariamente cheio de troca e de partilha.
Vera Mantero reuniu neste projecto uma série de performers, artistas e pensadores determinados a pôr em prática, e através de diferentes campos, a ideia de uma vida potente.

Vera Mantero
Para esta residência proposta pelo Le Quartz e pela Capital Europeia da Cultura Porto 2001 para o Balleteatro Auditório, Vera Mantero propôs-se pensar em conjunto (uma das sua actividades favoritas!). Reuniu vários artistas durante um mês em Brest, com o objectivo de pensar com eles: os coreógrafos/performers Sabina Holzer, Litó Walkey, João Samões e Martin Nachbar, o escritor-performer António Poppe, o músico Boris Hauf e, no campo das artes visuais, Nadia Lauro e Helena Inverno. Durante quatro semanas as questões giraram à volta de: como surge a energia? O que nos faz mover na vida, o que é que põe um ser humano em movimento? O que é que cria a curiosidade, o que é que a põe em movimento? Como atravessar uma vida que de facto aproveita a força de toda a sua potência?
Estes nove artistas quiseram habitar, e fazer habitar (pelo público), esses outros lugares da existência, menos palpáveis, menos lineares, menos funcionais, mas igualmente necessários. Ou mais necessários ainda, pois que não encontramos sentido para as nossas “funções” sem os habitarmos. Estas coisas inexplicáveis e indescritíveis através da nossa linguagem quotidiana, mas dizíveis por estas outras línguas que estão no nosso corpo, na nossa percepção, na existência de todos nós. Precisamos desta prática de “afinarmos” os nossos seres a estas outras línguas, de emitir e de entender o que nos atravessa através delas.
Num processo de um mês reflectiram, falaram, improvisaram, observaram, trocaram e criaram ligações entre palavras, acções, movimentos, sons, espaços ou objectos. Um espectáculo criado por artistas de diferentes campos e que toma, sucessivamente ou simultaneamente, várias formas: o concerto, a conferência, a coreografia, a instalação... e onde o público encontrará assim também o seu lugar sob diferentes formas, seja em termos de espaço, de tempo ou de percepção. Jean-Michel Le Lez juntou-se a este grupo para trabalhar as luzes do espectáculo que concluiu todo este percurso. As quatro apresentações em Brest tiveram uma recepção excelente e este espectáculo é já alvo do interesse do Théâtre de la Ville, em Paris e do Off Festival Event, em Montreal. A apresentação no Balleteatro Auditório foi relativamente alterada devido às diferenças evidentes nas condições de espaço dos dois teatros. Foi necessário fazaer ligeiras modificações no dispositivo cénico, em consequência nomeadamente da ausência de sub-palco na sala do Balleteatro e às diferentes dimensões do espaço.

Vera Mantero
derramai o animal nas ondas
mil auditórios de nervos


nervos principais

ao memorizar estou a criar uma plateia de nervos eufóricos, nervos sobrenaturais, autênticas feras da memória: a pesar os átomos a medir instantes a partir indivisíveis nervos autênticos. ao memorizar estou a dar sangue a certas palavras ou a mergulhar certas palavras no meu sangue, de memória a circularem novamente num ser vivo com a energia autêntica da morte: sou um ladrão do tempo, sou uma poderosa meia distância, sou uma lesão de energia verídica. ao memorizar estou a nascer da mesma admiração; da mesma palavra no sentido natural; no mesmo local extraordinário dos textos que eu adoro; se tão alto imagino que de memória me perco, escrevo isto: sou um ladrão do tempo! a rever a matéria amorosa – árvore genealógica viva – eu nasci com um estalo ao som que nunca pára a revelação da natureza. acredito nesta memória eufórica, neste descobrimento dos nervos principais: amor magnitude explosão de silêncio, para uma vida fascinante. memorizo o esboço laborioso do som, os animais alfabéticos em pânico, a calamidade verbal, que é real para quem vive em amorosa solução de vida com a palavra: nervo privilegiado para articular a dimensão do sentimento, e para formular a lesão de toda a natureza humana e inumana. este livro expõe ou exprime uma memória superlotada de palavras célebres. palavras.

António Poppe


palavra
nervo universal árvore genealógica viva
a energia verídica a elaborar a vida
a memória eufórica
palavra
passagem célebre
amor magnitude a mesma palavra no sentido natural
porção de som articular a dimensão do sentimento
palavra
por capitulação vertiginosa rir capitulação se capitulação recapitulação vertiginosa

a memória em flagrante: ¾ o som em flagrante: ¾ a palavra em flagrante
mil nervos auditórios o nervo principal imagina a voz presente infinita nervura tenra natureza o amor amor natureza cheia filtrava a dicção a lesão nervo fora da posição ordinária a matéria infinita mil auditórios de nervos
criaturas daquele elemento árvore genealógica viva a lesão nutre o som da natureza a sexta voz a voz e eu as
recapitulações em matéria nutre a sexta voz a voz e eu a terra responde maçã saliente se lhe faz nervos de geração extraordinária ossos da caixa filigrana craniana
se apelidar a voz dos nervos danúbio do som da núbio da memória se trespassava pressão na intervenção do crânio mandíbulas fora do lugar ordinário somente a bela caixa craniana
: a criatura em desconcerto e magnitude a rever a matéria amorosa

António Poppe


Se perguntarem: das artes do mundo ?
Das artes do mundo escolho a de ver cometas
despenharem-se
nas grandes massas de água: depois, as brasas pelos recantos,
charcos entre elas.
Quero na escuridão revolvida pelas luzes
ganhar baptismo, ofício.
Queimado nas orlas de fogo das poças.
O meu nome é esse.
E os dias atravessam as noites até aos outros dias, as noites
caem dentro dos dias – e eu estudo
astros desmoronados, mananciais, o segredo.

Herberto Helder, in “Do Mundo”

Ficha Artística

Direcção artística
Vera Mantero

Concepção visual / instalação
Nadia Lauro, assistida por Thérèse Beyler

Criação / Performance
Sabina Holzer, Vera Mantero, Martin Nachbar, António Poppe, João Samões, Litó Walkey

Banda sonora e interpretação ao vivo
Boris Hauf

Criação vídeo
Helena Inverno

Desenho de luz
Jean-Michel Le Lez

Textos
Herberto Helder / William Shakespeare

Produção
O Rumo do Fumo

Co-produtores
Le Quartz-Scène Nationale de Brest, Balleteatro Auditório, Teatro Nacional de São João, Porto2001 Capital Europeia da Cultura

Cronologia

3 Maio 2002, festival BIG Torino, Turim/Itália
29 - 30 Novembro 2001, Balleteatro Auditório, Porto/Portugal
7 - 10 Novembro 2001, Le Quartz – Scène National de Brest, Brest/França